Será que ainda é possível, em pleno século 21, acreditar que todo tipo de mal veio ao mundo por causa de uma simples e inocente mordida na maçã?
Não é segredo para ninguém que a
Bíblia, sobretudo no Antigo Testamento, tem passagens muito estranhas. Algumas
são tremendamente misteriosas (Gn 6.1-6; Ez 1, por exemplo), outras
aparentemente incoerentes (Êx 4.1-26; Pv 26.4-5), algumas, de tão insólitas,
não devem nem ser lidas em voz alta na igreja, pois causariam grande
constrangimento (Dt 23.12-14; 1Sm 24.3). Isso para não falar dos trechos eivados
de violência absurda (Jz 4.21; 19.10-30). Uma das passagens que causa maior
estranheza, contudo, é a que narra o primeiro pecado humano (Gn 3).
É muito comum ouvirmos dos
incrédulos que a história contada ali é prá lá de infantil, parecendo-se mais
com um “conto da carochinha” do que com um texto sagrado. Para sermos sinceros,
há também entre nós crentes muitos que se incomodam com a linguagem desse
texto. Claro que não chegam a ponto de dizer que se trata de uma lenda ou coisa
parecida – afinal temos temor a Deus e Sua Palavra e não queremos blasfemar –,
mas que o relato da queda humana poderia ser mais, digamos, profundo e adulto,
com isso todos concordam.
De fato, há em Gênesis 3 alguns
elementos um tanto quanto impróprios para um texto que se propõe a explicar por
que há tanto mal e sofrimento neste mundo. É bom lembrar que este mesmo mundo,
segundo os dois capítulos anteriores do próprio Gênesis, fora criado
absolutamente perfeito e avaliado como “muito bom” pelo Juíz dos juízes (Gn
1.31). Então, por que, de repente, tudo virou pelo avesso? O que aconteceu para
que a obra perfeita do Criador perfeito se corrompesse de modo tão absoluto e
radical? Como explicar a diferença entre o mundo criado em absoluta harmonia e
paz e o que vemos hoje, cheio de injustiça, crueldade e perversão? Essa não é
uma tarefa fácil, sob nenhum ponto de vista, e o relato do primeiro pecado
humano se propõe a desempenhá-la.
E como ele o faz? Por meio da
descrição do que teria acontecido. Havia um jardim (não uma selva), onde o ser
humano vivia em plenitude com Deus, com a natureza e com seu semelhante – um
verdadeiro Paraíso. Não existiam conflitos, nem frustrações nem nada de ruim
(tédio incluído); só harmonia e prazer. Um belo dia (nem tão belo assim), a mulher
se encontra com uma serpente e trava com ela uma conversa muito esquisita.
Segundo a cobra (que fala!!!), Deus não estaria sendo honesto com a mulher e
seu marido. Havia coisas muito preciosas que Ele, Deus, não queria de modo
algum que o ser humano conhecesse, pois se isso acontecesse, Deus não seria
mais o único ser no universo a dominar tal conhecimento. Em outras palavras, o
Criador não era assim tão bom, pois egoisticamente vedava ao ser humano o
conhecimento que o tornaria igualmente divino como Ele, Deus, sempre fora. A
serpente diz explicitamente que Deus não queria que a mulher comesse do fruto
proibido, não porque isso a mataria, como o Senhor dissera, mas porque Ele quer
continuar a ser o único a conhecer e dominar o universo. Então, reparando
melhor no tal fruto (maçã?), a mulher não resiste à curiosidade e come do
fruto, dando-o também a seu marido, que lhe segue os passos insensatos.
Imediatamente, eles começam a ver
tudo diferente. A nudez que antes era natural passa a ser ofensiva. A companhia
de Deus, que antes era prazerosa, agora inspira terror. A confiança de um no
outro é trocada por acusações mútuas, envolvendo os seres humanos e sua relação
com a natureza. Enfim, tudo lhes parece completamente diferente do que era
antes. Aí, Deus vem, fica indignado com o que aconteceu e pune a todos com
maldições. A serpente tagarela é condenada a se arrastar no pó. A mulher a ser
dominada pelo marido e a ter filhos em meio a dores atrozes, enquanto o homem é
condenado a ter de lidar com todo tipo de revés da natureza para sobreviver.
Ato contínuo, Deus expulsa o homem e sua mulher do jardim, mandando-os “se
virarem” pelo mundo afora.
Essa é, em resumo, a narrativa da
queda. De fato, não há quem desejasse que o texto que trata de algo tão
tenebrosamente profundo, como é a origem do mal no mundo perfeito criado por
Deus, fosse, no mínimo, mais teológico. Mas é assim que ele aparece na Bíblia e
é dele que temos de extrair as respostas que precisamos para compreender o que
– e por que – aconteceu naquele fatídico dia. Há razões muito próprias para a
linguagem do relato ser como é, e posso garantir, ela não tem nada de infantil
ou superficial. Pelo contrário, o teólogo comprometido com o Reino de Deus e
Sua Palavra sabe extrair dessa narrativa lições tremendamente profundas e
complexas acerca da natureza humana e do pecado. Dito de outra forma, Gênesis 3
não teria como ser mais teológico do que já é.
Infelizmente, muitos se deixam
levar pelas interpretações populares, iludindo-se com a aparente simplicidade
do texto. Quem nunca ouviu dizer que o primeiro pecado, na verdade, nada teve a
ver com fruto? Segundo essa interpretação milenar, a queda foi a relação sexual
– proibida – entre nossos primeiros pais, fato evidenciado pela implicância subsequente
com a nudez. Tanto é assim, que até hoje a maçã mordida é um dos símbolos mais eloquentes
da transgressão sexual. Durante os milênios em que a Bíblia não era impressa e
distribuída de modo acessível, disseminou-se essa interpretação mentirosa por
todo o mundo. Ela fortalecia a ideia de que a castidade é essencial à pureza e
agrada a Deus. O sexo só existe para a procriação e assim mesmo é algo sujo,
que deve ser evitado ao máximo. Todo tipo de prazer físico é condenado
tacitamente, como manifestação dos impulsos carnais inspirados na tentação
demoníaca daquele dia. Como esses fatores (castidade, virgindade, ascetismo)
eram os mais valorizados pela pregação do cristianismo medieval em diante, não
é de se admirar que a associação do pecado original com o sexo tenha se tornado
tão popular.
Mas não é esse, de modo algum, o ensino correto do triste
episódio narrado em Gênesis 3. Na próxima coluna, vamos explorar o texto com as
ferramentas teológicas adequadas para entendê-lo em toda sua riqueza e beleza.
Não perca, você vai se surpreender.
Ansiosamente espero a segunda parte.
ResponderExcluirWagner
O problema que se um texto vem se explicando diretamente sem arrodeios, o ser humano tende a achar que algo está errado, pois não poderia ser direto e claro quanto a queda do homem. Deus foi tão misericórioso, que pôs esse fato narrado para que todos ricos e pobres, que leiem ou só escutam fossem informados bem explicitamente como o ser humano foi curioso e burro, é o que todos somos. Eu fico embasbacada quando vem alguem que estuda 4,5,6 ou mais anos a Bíblia e pega uma passagem clara e quer transformá-la em algo que só a mente dessa pessoa acha muito simples e transforma em algo que ninguém nem consegue entender. Já basta o Apocalipse que ninguém até hoje chegou num denominador comum!!!
ResponderExcluirConcordo chega de complicar o óbvio...
ExcluirMuito bom pastor, parabéns, aguardamos suas lições. Quero deixar aqui um entendimento, penso q ao provar da árvore proibida, tantas coisas ocorreram, vemos a desobediência ou rebeldia, o não esperar em Deus, deixar de ser gratos pelo q recebemos do Criador, o desejo de ser mais do que devemos ser, a vontade de passar pra trás aqueles q confiam ou confiaram em nós. Em fim, diversas lições tiramos dessa famigerada passagem bíblica, mas acredito que de todas as lições q podemos tirar desse fato, a de que quando não vigiamos e nos apartamos da aparência do mal, todos esses erros são cometidos por nós diuturnamente. É bem assim mesmo, não foi só Eva ou Adão q cometerem o erro de provar da árvore proibida, este erro, continuamente nos faz atentarmos contra nosso Deus todos os dias.
ResponderExcluirSai quando a conclusão só vir aki por causa dessa história da maçã poxa
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